sábado, 2 de outubro de 2010

BOM EM QUALQUER ÉPOCA - CÂNTICO NEGRO

Há tanta produção literária por esse mundão, tanta coisa que tanta gente tem acesso e muito mais coisa que tanta gente não tem que pelo bem do conhecimento humano e da literatura, acho que toda oportunidade que tivermos para aumentar a visibilidade de textos bons não pode ser perdida. Selecionei alguns que acho que precisam de quando em vez ser divulgados pelas suas qualidades inumeráveis. É só mais uma forma de dar ainda mais vida à sua imortalidade. Só lendo para qualificar. E isso cabe ao leitor. 



Cântico negro
José Régio



"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?


Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.


Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...


Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.


Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!



José Régio
, pseudônimo literário de José Maria dos Reis Pereira, nasceu em Vila do Conde em 1901. Licenciado em Letras em Coimbra, ensinou durante mais de 30 anos no Liceu de Portalegre. Foi um dos fundadores da revista "Presença", e o seu principal animador. Romancista, dramaturgo, ensaísta e crítico, foi, no entanto, como poeta. que primeiramente se impôs e a mais larga audiência depois atingiu. Com o livro de estréia — "Poemas de Deus e do Diabo" (1925) — apresentou quase todo o elenco dos temas que viria a desenvolver nas obras posteriores: os conflitos entre Deus e o Homem, o espírito e a carne, o indivíduo e a sociedade, a consciência da frustração de todo o amor humano, o orgulhoso recurso à solidão, a problemática da sinceridade e do logro perante os outros e perante a si mesmos


P.S: Eu achei este poema a minha cara no período eleitoral.

12 comentários:

chica disse...

TEU TRABALHO TEM GRANDE VALOR.

ESSE RESGATE É MARAVILHOSO!

ABRAÇÃO,FIZESTE UMA LINDA ESCOLHA,CHICA

pensandoemfamilia disse...

Olá Caca
Sempre é muito bom resgatar o que é valioso.
Manter-se mem[órias.
Abços,
Bom sábado.

Zélia Guardiano disse...

Ninguém me diga: "vem por aqui"!
Tens razão, meu querido Cacá!
Nestes dias que estamos vivendo, todo cuidado é pouco...rsrs...
Mas, brincadeira à parte, lindíssimo poema!
Muito grata, por dividir comigo esta riqueza!
Grande abraço, amigo!

Sheila disse...

Oi Cacá,bonito,quanta verdade,é um poema forte feito para refletir,que belo.parabéns pela escolha.

Ane Battagy disse...

"Mas minha alma é abençoada pelos Orixás, isso trago em meu semblante
Meu sangue ferve a cada luta decepcionante
E me impulsiona para os combates exaustivos
Da busca pelo amor, respeito e justiça, em meu peito ainda mais altivos!" Bia Aloyá

Maria Rodrigues disse...

Amigo uma escolha excelente.
Tenha um maravilhoso fim-de-semana
Bjs do tamanho do infinito
Maria

Sueli Gallacci disse...

Cacá, Adorei!!!

Lembrei de Clarice Lispector que disse "Não me deem fórmulas certas, pois eu não espero acertar sempre... não me digam o que fazer poie eu vou seguir meu coração"

É isso aí...

Um Bjo enorme.

P.s.Dá uma espiadinha:http://cronicasiagudas.blogspot.com/2010/10/o-endereco-certo.html

Adh2BS disse...

Cacá, muito bacana isso, esse resgate de uma poesia tão intensa.
Grande abraço,amigão.
Adh
(e bons votos)

Diogo Didier disse...

bela indicação amigo! fiquei muito reflexivo com a mensagem que esse poema emana...

PARABÉNS pelo bom gosto!

Toninho disse...

Zé este texto é de uma beleza rarissima, bom poder reler, e muito oportuno para o dia de hoje. Eu não vou por ai, prefiro ir por lá e assim fui com alma lavada.
Poste sempre estas joias raras da literatura,pois isto só nos eleva e nos inspira a não ir por ali.Meu abraço amigo mineiro itabirano de fé.

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