Esse negócio de buylling é bem
antigo na humanidade, minha gente. Não que eu seja tão antigo assim, mas a
minha infância já ficou para trás faz tempo. Ah, tinha uma diferença com agora:
os pais não permitiam de jeito nenhum que saíssemos humilhando as pessoas por
causa de um defeito físico, uma feiúra, uma gordurinha a mais. Se vissem ou soubessem que fazíamos troça
disso, a coisa ficava feia. Um castigo, no mínimo, era garantido, além de levar
a gente à presença da pessoa e nos fazer pedir desculpas. Mesmo assim,
colocávamos apelidos, mas era só na miúda. A pessoa nem ficava sabendo na
maioria dos casos.
A dona G, muito robusta e grandona era proprietária
do bar e mercearia Gorda (aí o buylling). O seu marido ganhou o apelido de sr
Gemeu (aí, de novo). Ele era bem franzino, um tico de gente perto dela. Que eu
tenho notícia, nunca souberam da chacota. O seu bar era o paraíso de todas as
crianças do bairro. Não somente por ser o único, como pelas balas, chicletes,
paçoca, maria-mole, pipoca doce e pirulito, guloseimas que criança não passava
sem. Não tinha uma moedinha que a gente ganhava que deixava de ser trocada lá,
quando não eram bolinhas de gude ou figurinhas para álbuns.
Ela ia prosperando ali e resolveu
ampliar o negócio. Como tinham um carro apenas e naquele tempo não tinha perigo
algum deixar carros na rua, ela colocou umas mesas na garagem e à noite, os
rapazes iam tomar suas cervejas e ouvir o som das músicas que vinham da vitrola
lá de dentro de sua casa.
Evaldo Braga foi um cantor romântico que fez
uma carreira meteórica, quase com a mesma velocidade que deu fim à sua vida. Ele
morreu em um acidente no auge do sucesso, com vinte e cinco anos. Hoje,
lembrando de umas canções suas, dá até uma dor no peito de tão sofridas eram as
letras, tanta desdita, tanto desengano amoroso. Isso ainda é comum, mas a
interpretação que ele fazia com a voz grave fazia muita diferença para os
românticos desamados. Só para se ter uma
ideia do dramalhão, ele dizia “na terra, aqui se faz, aqui se paga, hoje eu sei
que estou pagando, hoje vivo a lhe amar. Meu Deus, eu pergunto a todo mundo por
onde anda o meu amor, eu não sei...” (Sorria, Sorria). Ou então esta outra:
“Sinto a cruz que carrego bastante pesada... quem de amor me chamava na hora da
ceia, quem de mim tanto gostava, agora me odeia.” Isso era uma espécie de arrependimento tardio
por ter desprezado uma mulher que o amava e ele viu a situação virar de cabeça
para baixo quando ela resolveu dar um basta.
Foi assim que tive o meu primeiro
contato, digamos, impactante com as chamadas músicas de dor de cotovelo. E foi
também a primeira vez que vi uma pessoa tomar sozinho umas 10 cervejas e se
inundar de lágrimas por causa de um amor perdido ou desfeito, sei lá. O rapaz
chegou à garagem-bar e foi tomando avidamente e pedindo a toda hora para
repetir o disco. Isso chamava a atenção da meninada que brincava ali por perto
ouvindo aquele chororô todo. A turminha achando que ele estava sofrendo algum
ataque, que tinha morrido alguém da família, todo mundo condoído mas sem jeito
de chegar perto para perguntar o porquê de um choro tão sofrido num marmanjo
daqueles. Só fui saber quando a dona apareceu e falou para ele ir para casa,
que “a vida é mesmo assim, alguém tem que perder pra outro entrar no jogo”
(isso eram versos de uma outra canção de dor de cotovelo, A Vida é Mesmo
Assim). Mas aí ela já estava falando do ponto de vista feminino, pois a música
é de Cláudia Barroso.
IORRAN SEBASTIÃO BASTOS