Timidez e vergonha na minha compreensão sempre tiveram uma definição parecida nas atitudes que empreendi ao longo da vida. Não sei ainda estabelecer os limites de uma e de outra. De onde veio isso, também acho que não sei muito bem. Desde muito cedo já abominava a possibilidade de estar em evidência diante dos fatos e pavor diante de muitas pessoas. Na escola tremia, gelava e perdia a pigmentação da pele só de pensar que poderia ter que responder a alguma questão em voz alta em sala de aula. Ir ao quadro negro então dava arrepios e dor de barriga. Encontrei recentemente e depois de muito sofrimento uma explicação satisfatória para mim e ao mesmo tempo apaziguadora com esse passado, já que não posso mais reverter o quadro. Se bem que até melhorei um pouquinho. Falo demais, não em público, mas converso muito como forma de superação, numa espécie de acerto de contas com o trauma que carrego. Cheguei até a ser sindicalista. Não que essa função transforme alguém em pessoa melhor que os outros, mas pela busca de igualdade e contra injustiças, fiz muitos discursos.
A justificativa é que, sendo filho de operário, criado em um bairro construído pela companhia mineradora da cidade exclusivamente para operários e habitado exclusivamente por operários e suas famílias, onde ela ditava tudo, os resquícios de submissão resvalavam de pai para filho igual transmissão hereditária, sem nenhum obstáculo visível ou declarado. A firma dava escola, material, presente de natal, tirava a gente de casa quando ia dinamitar a mina, que era muito próxima, fornecia o transporte, a comida básica e os remédios, além de ser dona do hospital. As rebeldias eram surdas, mudas e tratadas como maluquices. Além disso, os filhos carregavam sentimentos de culpa quando faziam artes próprias do ofício de ser criança e ainda tinham de ouvir dos mais velhos que tais atitudes poderiam prejudicar o emprego do pai. Em resumo, crescemos quase todos ali sob o império do sim senhor.
Lembrei-me disso para falar de teatro. Ou o porquê de não ter me tornado um grande ator (modéstia, não?). Durante o curso fundamental (na escola da Companhia desde as primeiras letras), eu tinha um professor que era um irmão holandês dessas irmandades que espalham religiosos mundo afora para a catequese entre os ímpios e incréus. Ele dava aulas de Educação Artística. Irmão Cristino. Era um varapau, de quase dois metros, sisudo e carrancudo, mas indulgente e dócil com aqueles com os quais simpatizava e creio que era o meu caso. O nome de verdade era um embolado difícil de pronunciar e adotou Cristino que assim é regra da igreja nesses casos. Adotar um nome e costumes do povo que vai arrebanhar para facilitar a missão. Gostava de teatro e sempre ensaiava peças em todo o colégio, indicando os candidatos a atores entre os seus eleitos ou alunos prediletos. A peça que me revelou um borra-botas era Pluft, o Fantasminha, texto de Maria Clara Machado. Justo essa: o fantasma que tinha medo de gente. E convidou-me para ser o personagem principal. Parece até que conhecia minhas idiossincrasias. Amarelei, nem precisa dizer e já fui logo negando para não haver possibilidade de insistência. Não prejudicava nas notas mesmo! Ainda assim não deixei de comparecer ao espetáculo. Era uma necessidade, pois, me abriria a possibilidade de arranjar uma saída honrosa à minha negativa, caso a peça não saísse bem ao gosto da platéia. Foi no colégio N. S. das Dores, escola de religiosas para meninas e homem só entrava nessas ocasiões ou se fosse para alguma manutenção. Tinha lá um pequeno palco acortinado onde se realizavam todas as apresentações dos colégios da cidade. Foi um retumbante sucesso de público e eu, lá do fundo, nas últimas filas, observava que o Irmão dirigia a peça e também me dirigia olhares sob os grandes óculos, com aquele semblante que expressava um lamento, como se quisesse me dizer: “veja só o que você perdeu!”
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