Eu freqüentava o Grupo Escolar, quando o terceiro presidente da golpe de 1964 foi visitar a mineração Vale do Rio Doce na minha cidade. Todas as crianças da escola foram impecavelmente uniformizadas e portando bandeirinhas do Brasil feitas de papel e bambu, perfiladas no Ponto dos Aflitos, caminho da mina, onde funcionava um mercado clandestino de hortifrutigranjeiros e outras, carnes, ervas e outros utensílios em meio à imensa poeira e lama. Aquilo tinha que ser mascarado não podia o presidente ver nem saber da existência. Diziam para a gente que era a revolução. Nesses eventos era obrigatória a participação, com as mãos no peito para mostrar orgulho e sorrisos de crianças nos lábios representando a satisfação da população. A mesma coisa era no sete de setembro. O desfile era obrigatório. Valia até nota no boletim. Mas depois fui crescendo até o dia em que vi uma bomba sendo jogada em minha casa. Passou um fusca, jogaram e nem deu para saber quem foi. Ninguém nos dizia nada. Só sabia que meu pai era do sindicato dos trabalhadores da mineração. Mas ninguém falava nada.
Mais adiante, vim para capital estudar. Aí comecei a ver que tinha gente querendo fazer uma revolução. E pensava. Mas já não teve uma revolução? Começaram a me ensinar que a outra revolução era para restaurar a democracia. Comecei a ver com meus próprios olhos e sentir no nariz, quando na rua, a gente tinha que correr assim, do nada, de avanços das tropas em cima de alguma manifestação, tampando a cara dos gases das bombas. Passei a gostar de ler e os rapazes da república onde morava me alertavam que não era qualquer livro que se podia ler. Tinha uma censura, com livros, com discos. Mas na televisão e nos jornais nada se falava sobre o assunto. Lendo às escondidas, comecei a entender o sistema. Me envolvi também vendo colegas todos engajados, estudantes nas ruas todos os dias. Percebi que a outra revolução que se tentava era para derrubar o regime que humilhou, ofendeu, torturou, matou, destruiu vidas carreiras, reputações, famílias. Para andar nas ruas à noite o documento que tinha que se ter em mãos era a carteira de trabalho. Não adiantava RG, CPF. As bancas de jornais que vendiam material ‘proibido’, viviam sendo explodidas, tais como as redações de jornais que ousavam criticar alguma coisa. Não pode ficar esquecido. Passou mas não se esqueceu. Durou vinte e um anos.
Hoje faz 47 anos que tudo começou. Ainda bem que já passou, mas eu estou contando essa historinha é mais para quem nasceu depois disso tudo, maioria de jovens tão desligados da história, que nem sente os pés no chão a não ser para mostrar tênis de marca. Que não têm a democracia como valor social coletivo e universal. Para aqueles que acham que é só na indiferença política e no consumo que reside toda a felicidade possível de ser alcançada.
PEQUENA MEMÓRIA PARA UM TEMPO SEM MEMÓRIA
PS: SEMANA DE MEMÓRIA HISTÓRICA
texto atualizado. Publiquei-o em 2009.
11 comentários:
Oi Cacá
Foi um tempo tão cinzento que tenho poucas lembranças.
lembro da obrigatoriedade em desfiles escolares!e muita censura no que podíamos ler.
E hoje? cadê as revoluções?
os jovens querem ficar em frente dos computadores em seus games.
penso que no mundo todo .
tenho lido sobre Portugal que também se ressente dessa juventude sem norte, sem entusiasmo , sem vida pulsante!
uma pena !
grande abraço Cacá
As bandeirinhas e hinos escolares tocando e vibrando enquanto isso, nos porões da ditadura os gritos de horror e dor ecoavam para o nada.Passou,mas ficou muita sequela e ainda bem que estamos aqui registrando tudo
grande abraço amigo Cacá.Mais um post importante
Bom dia, querido amigo Cacá.
Quando tudo começou, meu pai comentava muito, e alertava meus irmãos de como deveriam se comportar lá fora.
Ninguém podia ficar conversando com outros, em turma, que era perigoso. Um dos meus irmãos estava sempre falando sobre o DOPS, do que tinham feito, etc.
Sozinho, ele circulava demais, aguçado pela curiosidade e pelo medo.
Lembro-me da irritação do meu pai, com o tal "Estado de sítio" (Ninguém entra, ninguém sai)
Ah... depois veio o decreto AI-5.
O medo já é uma tortura. E a maioria vivia assim.
Viva a democracia!!
Um grande abraço.
Tenha um lindo dia democrático.
O Hino era cantado todos os dias, antes da aula começar.
Carreguei muito essas bandeirinhas
apoiadas numa lasquinha de bambu, ao marchar pelas ruas, junto com a escola, num desfile que demorava horas e horas.
Esses eventos me emocionavam, porque meu pai era muito patriota, e passou isso pra nós.
Até hoje, o Hino me emociona.
Um grande abraço.
Amigo. Arrepiei de ler. Fantástico.
Sua escrita expressa emoção, Cacá.
Kenny Rosa
Quando falam da ditadura realmente eu consigo imaginar, mas como não passei pela experiência, por mais que eu saiba que foi isso tudo, é estranho porque não a vivenciei. Talvez seja a mesma sensação que meus filhos tem quando falo das "diretas já", da extinção do coronelismo e voto indireto e principalmente, do Collor, dos "cara pintadas" e do impeachment. Eu era menina, com meus dez, doze anos, mas me lembro de muitas coisas e todo o contexto da história. Lembro-me das conspirações que mataram PC Farias, lembro do depoimento do Pedro Collor, lembro de tudo! Sei que essas coisas marcam e com certeza o período da ditadura foi e sempre será um dos piores momentos do Brasil e com certeza quem não só estudou como vivenciou esta época, deve ter isso gravado e marcado para sempre em sua memória. BJOS!
Vivi essa época,querido,como estudante corri da polícia,embora não fosse exatamente,engajada
Mas,comprava o Pasquim às escondidas e lia Julinho da Adelaide,nos jornais,sabendo q/ era o nome q/ escondia o Chico..
Revoltei-me com o Cone Sul,as mortes,a miséria q/ se fazia contra garotas como Dilma,estuprada e torturada tantas vezes.
O tempo passou.Mas,,n/ deve ser esquecido.
Um grande abraço
Grande Cacá, mais uma bela postagem, como gostaria que um bocado de jovens que só tem titica na cabeça o lesse. Vivemos na época por ti mencionada coisas semelhantes, eu, ainda no início dos antos 70 fui obrigado a vender bandeirinha do Brasil para ajudar na construção da rodovia Transamazônica. Meu amigo, o leio sempre, só não tenho tempo como gostaria só para ficar aqui postando comentários em seus belos escrevinhamentos.
Muita paz, para você e os seus!!!
Seu amigo Simei.
Oi Cacá
Um dia a gente troca figurinhas sobre aquele tempo.Fui metalurgico na Belgo Mineira durante 10 anos e fui mandado embora nas greves dos fins dos setenta.Não me arrependo nem um tiquinho. Te conto umas historinhas um dia desses.
Abração!
Berzé
Pois é Seu Zé, e ainda nos davam um diploma de bem comportado geral,mas nós crescemos e rasgamos aquele diploma,nas escadarias da igreja São José, na praça da rodoviaria e mais tarde nas assembleias aparelhadas dos sindicatos.Eu amava tudo aquilo, Lenin era meu livro de travesseiro.Ainda me lembro dos cataventos em verde e amarelo, pra dizer que este era um país que vai pra frente.Eu bem que pensei em escrever algo sobre esta dita, mas me calei, diante da Operação Cristal, no barulho daquela bomaba que explodiu a simples secretaria da OAB.É amigo, quanto tempo! Por falar em sindicato, tirei uma fotos lá no Metabase com fotos de seu pai e do salao de reunião que leva o nome dele.Vou lhe enviar.Memorias de um tempo infeliz de nossa historia.Meu abraço de toda paz e que Deus nos proteja destas revoluções.
É, tempos nublados esses, que ficaram para trás, mas que ainda ecoam!
Abraços renovados!
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