quarta-feira, 26 de maio de 2010

UM PAI EM TODAS AS COPAS

PAI,

Era para falar de copas do mundo. Você está acompanhando essa modalidade desde a primeira, em 1930. Era o seu primeiro ano de vida. Mas entre uma copa e outra, quantas histórias vividas, quanta coisa aconteceu nesse mundão nos últimos 81 anos. A saúde que lhe acompanha desde 1929 não é algo que deva ser levado apenas como natural. A começar que naquele ano, o mundo experimentava uma das maiores crises econômicas de sua história. Faltavam inclusive, gêneros alimentícios porque uma especulação financeira de proporções gigantescas derrubou os montes de dinheiro que circulavam no mundo, então muito menos habitado, e que deixou alguns ricos pobres e os milhões de pobres, miseráveis. No Brasil, o abalo foi ainda maior. Uma economia que dependia quase que exclusivamente de um produto, este que lhe ofereço hoje para tomar de manhã e que alguns de seus filhos até o plantam atualmente. O café movia o Brasil e o deixou imóvel e faminto. Ele não faltava, pelo contrário. Havia em abundância sem que ninguém se interessasse em comprar.

Veio a seguir uma rigorosa ditadura, o chamado Estado Novo, capitaneado por Vargas, suprimindo liberdades, sufocando o povo. E logo depois uma guerra mundial. Já era a segunda da história. Ainda bem que o senhor era apenas uma criança, um quase adolescente. Uns aninhos a mais e talvez tivesse ido engrossar as fileiras da Força Aérea ou da Força Expedicionária Brasileira que foram combater na Europa, aliados de última hora dos americanos, soviéticos, franceses e ingleses. Nesse intervalo, o mundo ficou sem milhões de vidas e sem duas copas do mundo. Passada a carnificina humana, caiu também a ditadura e o país parecia encaminhar-se para uma normalidade. Nesse meio tempo, você já rapazinho, entrava na Vale do Rio Doce, naqueles tempos onde a tecnologia maior ainda era o lombo do burro e os pequenos caminhões que transportavam para o trem de ferro e os navios, o rico minério de Itabira para ir para o mundo. Um pouco dele ajudou a fabricar não somente os carros da nascente indústria de automóveis e estruturas de aço nas cidades, mas também tanques e armas de guerra. Entrou a década de 50 com o Brasil sediando a segunda copa depois do período de interrupção. Inaugurava-se o Maracanã, então o maior estádio de futebol do mundo. Porém o Brasil não correspondeu ao investimento absurdo na sua construção com a alegria para o povo. Ouvia pelo rádio entre lágrimas que hoje a tv nos mostra, a seleção sucumbir diante de mais de 100 mil pessoas ao Uruguai., lembra-se? Por outro lado, Getulio Vargas que havia sido deposto ao final da guerra, voltava eleito pelo voto direto e nos braços do povo se redimia da sua condição de ditador mas não deixaria de enfrentar os seus antigos detratores nem o poder econômico ancorado no capital internacional. Suicidava-se logo depois de outra copa do mundo em que o Brasil também havia passado do em brancas nuvens.

Você, no entanto, estava em outras nuvens. A essa altura, já havia a Maria Delfina em sua vida, aquela gloriosa mulher que o acompanharia por mais de trinta anos, gerando uma significativa prole, seus nove filhos que aqui estão. A nossa mãe merece um capítulo à parte e muito generoso por sinal. Não foi muita sombra e água fresca o que vocês tiveram que passar para educar essa turma toda. Estamos muito bem, obrigado mesmo!

Em 58 já deu para você sentir uma alegria como torcedor. Pelé, o menino prodígio da bola encantava o mundo e ajudava o Brasil a trazer o seu primeiro caneco. Junto com as seleções de 1970 e 1982, talvez tenham representado o que de melhor já se produziu no futebol para quem aprecia a arte sem paixões cegas. Apenas o jogar bonito. Não sei se você vê da mesma forma. Aqui já é uma opinião deste filho que lhe escreve. Eu já era um garoto em 70 e em 82 já era um homem feito. A de 58 eu não me canso de ver quando reprisam nos canais de televisão. Ainda ao final da década de 50, veio o que talvez possa ser chamado de milagre econômico no Brasil. Não digo em termos de uma isonomia nas riquezas produzidas, que isso não é coisa que o capitalismo proporcione em lugar nenhum do mundo, mas de uma nova fisionomia que o país ganhou, com a chegada massiva de indústrias de bens de consumo e da construção de Brasília para ser a capital Federal. São os anos JK. Nesse meio tempo, há uma consolidação de uma classe operária pujante e você estava lá, imbuído de princípios de igualdades envolvido com o movimento sindical urbano em crescimento. Em 62 nascia este que lhe dedica estas linhas e o Brasil havia faturado o seu segundo troféu.

Veio 1964 e um pesadelo passou a povoar os sonhos de liberdade. Alegavam que era um combate a um misterioso fantasma comunista que rondava o mundo e, no entanto mergulharam o país numa das mais terríveis páginas de nossa história. Uma verdadeira guerra civil urbana e rural, com torturas, mortes, perseguições de toda sorte e a liberdade se limitava apenas ao direito de trabalhar e pensar, desde que fosse calado. Falar não podia. Manifestar-se publicamente, nesse caso, nem pensar. Você é testemunha quase física dessa perseguição. Digo quase, pois não chegou a freqüentar os porões dos paus de arara e choques elétricos, ainda assim teve seu mandato sindical cassado, seu contrato de trabalho rompido e sua família sob ameaça constante Safou-se por muito pouco. Foi em plena copa de 70. A gente era muito criança e adolescentes ainda e comemorava sem saber que os “noventa milhões em ação, pra frente Brasil” era só um slogan para encobrir o sangue que corria nos bastidores das vidas de tantas pessoas que ousaram discordar da ditadura militar. A sua prole já estava toda crescendo nessa época, felizes e alheios às dificuldades. Tivemos apesar de tudo, uma infância muito feliz. O ideal de felicidade não estava tão necessariamente associado ao conforto e excesso de acumulo patrimonial e de estrelato e brilho individual como nos dias atuais. Os afazeres coletivos, as possibilidades de viver sem medos nas ruas, a necessidade de inventar, de criar as próprias brincadeiras nos permitiam um maior convívio humano e acho que nos satisfaziam mais ao espírito do que hoje, quando parece que só se consegue uma felicidade depois que passamos no caixa de algum estabelecimento.

Ficamos num jejum de mais de vinte anos sem saborear um título mundial e quanta coisa aconteceu nesse período em sua vida! Os filhos começavam a ter seus próprios trabalhos, suas rendas para diminuir o seu penoso esforço e da nossa mãe de garantirem dinheiro para fazer frente a tanta demanda de alimentos, escolas, roupas, calçados, médicos, dentistas e outras coisas que os pais dão aos filhos. Os primeiros foram saindo de casa e puxando a fila dos outros em busca de seus sonhos, estudando e trabalhando. Começaram em meados da década de 70 a se casarem algumas filhas, outros se formando em alguma coisas.

Entra a década de 80 com o nosso primeiro - e creio convicto -, maior baque humano. Mais do que qualquer fome, mais do que qualquer angústia existencial, mais do que qualquer dificuldade material. A perda de nossa mãe, tão jovem ainda, apenas 51 anos, nos deixando meio acéfalos, meio desnorteados, meio sem chão. Ela tinha uma presença tão importante para todos nós que ainda hoje, após tantos anos de sua partida não conseguimos esquecer o seu significado, o seu aprendizado, a sua sabedoria possível. Falo por mim, mas pelo muito que conheço de meus irmãos todos, não acredito estar exagerando se disser que falo por eles também.

Você nesse intervalo, além de aposentar-se em 82, nunca deixou a sua militância. Não era mais um sindicalista apenas, pelo contrário, expandiu a sua ação para toda a comunidade. Não lutava para melhorar as condições de vida apenas de seus companheiros de mesmo uniforme. Estava numa luta de toda a comunidade Itabirana, como permanece ainda hoje emprestando toda a sua experiência, toda a sua habilidade diplomática e todo o seu carisma para construir uma cidade que dê dignidade no dia a dia de seus habitantes. Assistimos em 94 e 2002 o Brasil ser tetra e penta campeão com esse futebol de resultados e egos muito mais do que arte como era antigamente. Mas de resultados é que mais se fala atualmente. Então estamos aí, a espera do hexa, do hepta... E à espera também de dias melhores para toda a maioria da sofrida e manobrada população brasileira.

Queremos e o senhor também, claro, muito mais do que títulos de copas do mundo. Títulos mais importantes seriam os que laureassem a sua luta em prol de educação, saúde, moradia, saneamento e lazer. Isto sim nos fará um povo mais orgulhoso de ser campeão do mundo em dignidade. A vida segue. . A sua dignidade segue, cada vez mais elevada; seus calos nas mãos e suas rugas cada vez mais respeitados. Temos muito orgulho de poder dizer a quem quer que seja que somos filhos de José Felipe Adão.

Parabéns, PAI.

Aceite esse singelo cafezinho virtual, mas não se sinta liberado da bagunça física. Sábado próximo estaremos toda a família aí, filhos, filhas, genros, noras, netos, bisnetos, sobrinhos, agregados e amigos reunidos para comemorar muito.

6 comentários:

chica disse...

Só posso te aplaudir mais uma vez! Linda essa carta e união da história de vida com as copas.Adorei!abração,chica

Anônimo disse...

Seu texto me emocionou. além de tudo está muito bem escrito e você conseguiu ainda exibir toda a criatividade do mundo. Um abraço amigo.

Aliz de Castro Lambiazzi **jornALIZta** disse...

Querido Cacá minerim, tudo bem? Adivinha só... tchan tchan tchan tchan!!! Já está nas páginas do meu blog Jornalizta a entrevista que você me concedeu sobre o seu livro!!!
Até que enfim, né Cacá? Me perdoe a demora, mas é que os últimos acontecimentos de minha vida mexeram muito comigo, eu realmente não estava em condições.
Bem, a postagem ficou gigante (você sabe que quando começo a escrever eu me empolgo, né?), mas espero que goste. Decidi postar a sua entrevista na íntegra, ela está tão maravilhosa que eu não poderia, de jeito algum, fragmentá-la. Se tiver alguma observação, dúvida ou crítica, por favor me fale, acato na hora.

Super beijo, felicidade, paz e sucesso!!!!

gorettiguerreira disse...

Olá querido!
É, hoje é mesmo o dia da família demonstrar os valores de seus "pilares" de seus exemplos de vida e coragem.
Viva seu Papai e comemorem bastante com muito amor, alegria e saúde o níver de seu papai.
Beijos emocionados pela sua bela narrativa de vida e dos fatos.
Goretti.

gorettiguerreira disse...

Oi meu anjo amigo!
Senti no coração uma vontade de reler esse Artigo que diz do amor de perda de uma mãe ainda jovem e diz com sabedoria do seguimento da estória até os dia de hoje e você centralisa seu pai entre um fato e outro em seu belo roteiro de grande romancista.
Amo seus textos e sua alma e sei que assim como você, ontem eu também me emocionei muito com seu relato e com o texto do meu mano Orestes "Carta pra Dona Tonia", minha mãe.
Essa semana estive com minha irmã a quem o Orestes cita que lhe caiu um cisco no olh, Salete... Foi penoso vê-la apenas enxergando vultos, ela que teve descolamento de retina e Deus sempre olha por nós, eu confio.
Por isso ele a visitou no dia seguinte no interior em cidade de Tietê onde a mesma vive com as duas filhas e... voltou arrasado e poético. Sei que ela é forte mesmo, pois há dez anos superou um câncer de mama e criou suas filhas porque o marido a abandonou nessa época.
É minha mana caçula e eu nem sei porque estou lhe contando isso.
Quero muitas alegrias nos 81 anos de vida de seu Pai junto a todos e com saúde, porue o resto é somente nosso "querer e o de Deus."
Hun! Que será que esse mineirim vai fazer de papá delicioso pro seu papai né...rs
Um beijo carimhoso Cacá.
Goretti Albuquerque.

lis disse...

Ah que carta tão linda! sentimentos fortes e saborosos com um bom café quentinho rs
Conta a história política que o País atravessou nesse período bonito da vida do seu pai.E sabe faze-lo tão bem! admiro os escritores. esse dom da palavra me fascina.
Obrigada Cacá por partilhar desse momento especial, a celebração de um amor incondicional , a vida do seu querido pai.
abraços e muita alegria no sábado junto dele.
Que haja muitos abraços.

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