quinta-feira, 26 de maio de 2011

POESIA E REALIDADE

A maioria dos poetas cujas biografias tive oportunidade de ler ou através de depoimentos não gosta muito que seus poemas sejam interpretados. E eu acho que estão cobertos de razão. Poesia pode ser como disse o Mário Quintana: “Um bom poema é aquele que nos dá a impressão de que está lendo a gente.” Pensando nisso e naquilo que a minha companheira me falou outro dia vindo do salão de beleza injuriada com o que ouviu lá acerca de “estar por dentro das coisas”, resolvi pedir licença aos poetas e vou interpretar um poema que me leu. Primeiro vou explicar: perguntada sobre personagens de tais ou quais programas de TV ela disse desconhecer, pois não costuma muito assistir à programação, ouviu o seguinte desaforo:
 
- Em que mundo você vive, minha querida? Está por fora de tudo! (sic)
 
Pois bem: é a isso que somos encaminhados aqui, ali e acolá. Temos que comprar tais objetos porque são modernos, temos que usar tais roupas, perfumes, calçados porque todo mundo usa. Temos que assistir ao que todo mundo assiste, temos que rezar no credo de nossa turma a fim de não sermos rejeitados no círculo de ralações. Temos que assistir a tal filme porque ganhou ou concorre ao Oscar. Temos que ler o último best seller para parecer culto e de bem com a onda que leva todo mundo para o mesmo lugar: o lugar comum. Ah, e o seu celular não tem blutufe? Que pessoa atrasada!
Daí que, lendo o CANTICO NEGRO, do José Régio, solicito que do céu ou onde quer que esteja me conceda esse beneplácito da interpretação pois acho que esse poema me leu. Mas aí, na hora em que resolvi interpretar, vi que ele parece ter me colocado palavras na boca, agilidade nos dedos, ou o que seja, e fala diretamente por mim, sem precisar por nem tirar absolutamente nada.
Só me resta acrescentar nesse rasgo de amargura, que a intolerância que tenho visto por aí contra gente que tem ideias próprias é filha (malcriada) da interpretação do mundo. Eu também amo é o longe e a miragem.
 
Cântico Negro (José Régio)
 
"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

 
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

 
Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o longe e a miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

 
Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

 
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!

26 comentários:

Hugo de Oliveira disse...

Esse poema Cântico Negro é narrado por minha senhora do engenho Maria Bethânia, no disco Nossos Momentos gravado ao vivo em 1982.
Inclusive já narrei também esse poema na abertura de um seminário...sou apaixonado por ele. É forte! Necessário para minha alma.

luz e paz

Hugo

Celêdian Assis disse...

"A poesia me lê", é tão verídico quanto é o paralelo que traçou entre uma fala corriqueira e banal, e a interpretação de Cântico Negro. Sim, realidade e poesia são tão distintas entre si e a poesia é tão forte que faz parecer que a realidade é que é utópica. Talvez é por ser assim que não lhe caiba interpretação plausível, mas que a deixemos nos interpretar. Sabe Zé, quando leio um poema, por exemplo como este aqui, me visto e invisto dele e me deixo levar ao sabor dos sentidos. Às vezes nem me ocorre, em momento de êxtase, que há ali um poeta "falando". Então, creio como você e Quintana, que aquele poema é uma leitura de mim, quando deixo extravazar coisas que sinto, mas que eu nunca soube dizer ou externar. Talvez o oposto de quando escrevo os meus, pois neles consigo desentranhar a minha alma, quem sabe para que alguém se invista deles.

Meu querido amigo, já te disse antes, mas repito, você é um grande pensador.
Texto fantástico!
Um grande abraço, Zé.
Celêdian

boutique de ideias disse...

Esse poema "também me leu", com toda certeza, Cacá!!! Embora eu nao seja conhecedora de muitos, tem alguns que com poucas palavras falam tudo!! Mas ainda é necessário muitos mais destes, para freiar o pensamento e conduta do moderno ser humano, de que para ser "style" é necessário copiar tendencias e seguir modinhas...

Agora, pergunta da vez: O povo sempre te chamou de "Zé" e eu nao vi, ou isso é um codinome novo?? haha olha que eu sou meio lesada, viu...
Beijos, migao!!!

Helena Frenzel disse...

Oi Zé, não sei se leste o Email que te mandei esses dias. Bom, hoje deu pra vir aqui e, tendo vontade, por que não participar, não é mesmo? Pois bem, essa questão da interpretação de textos já foi muito discutida. Susan Sontag escreveu um ensaio sobre isso e uma idéia que me ficou na cabeça foi a de que interpretar é complicado, pois significa 'empobrecer' (no sentido de simplificar). Penso que seja verdade, pois para entendermos algo, temos que simplificar. Depende também das vivências de cada um. Será que alguém consegue ler sem interpretar? Acho que não. Um texto que mistura fatos do mundo, por exemplo, dificilmente será assim interpretado por alguém que nunca saiu do seu 'cercado' e apenas se interessa por coisas locais - não é uma crítica, apenas uma observação. Quanto a seguir os próprios passos, para mim isso é sinal primeiro de uma forte personalidade. É difícil ser quem se realmente é, e ter coragem de pagar o preço de não querer se enquadrar e cair no lugar comum. Se alguém me pergunta em que mundo vivo, respondo: num bem diferente do seu, há googóis deles! Bom, fico hoje por aqui e não sei quando volto. Um abraço fraterno!

Yasmine Lemos disse...

Você foi perfeito no seu texto. Se não vamos na onda da massa robótica e mediana,somos anormais.Penso exatamente igual meu amigo.Tenho horror a quem se mete a "obra" e quer interpretar de forma impulsiva os poemas, os grandes poetas
O poema é uma verdadeira lavagem na alma,lindo de doer.
bom dia Cacá
meu abraço

Aleatoriamente disse...

Nem precisaria dizer que amei esse texto.
Mas não podia deixar de citar a frase já que digo o que sinto.
Cacá, acho tão sem nexo algumas pessoas quererem nos enturmar a seu modo de vida.
Acho que gostos são gostos.
Maneira de ser do outro também, isso sim tem de ser muito bem respeitado.
Tenho um celular que ganhei de meu pai e a escolha dele fui eu quem fiz.
Meu bichinho do barulho como chamo carinhosamente, é simples dos simples e me basta.
Não gosto de ostentações e nem também sei de cor e salteado das vaidades do mundo.
Uso o que gosto acho que de abuso a isso, o que sai da regra é meu batom.
A poesia é bela e bem colocada, não conhecia.
Eu a li e ela “me leu”.
Meus olhos brilham ao tocar suas palavras tão profundamente sábias.
A loucura aí, está na lucidez, e caminha na transparência das pontas dos dedos.
Grande poeta, ajuizado demais.
Via nas entrelinhas com os olhos da alma.
Belíssimo texto.

Beijo querido.
Fernanda

Rô... disse...

oi Cacá,

perfeito seu texto,
também me sinto um peixe fora d'água
muitas vezes,
porque não acompanho modismos nem tendências,
não frequento lugares da moda,
muito menos leio livros ou assisto filmes por que a maioria o está fazendo,

aqui em casa temos uma regra,
não temos regras,
os gostos e os direitos de cada um são únicos e totalmente respeitados...
mais uma vez sua escrita foi maravilhosa!!!
adorei

beijinhos

chica disse...

Lindo poema e gostei das tuas colocações tão verdadeiras... parece que temos que ser uniformizados...ver novela das 9, Ratinho,Fantástico, gostar de futebol,moda...tantas coisinhas mais, senão não estamos na crista da onda...
Que saco!!!


Adoro tuas postagens que sempre fazem pensar! abraços,chica

Cronicando disse...

Excelente! Penso que sempre somos lidos pelos textos que lemos. Pois o texto sempre é o mesmo, são as pessoas que os leem que são diferentes umas das outroas.
Abraços Cacá.
Kenny Rosa

pensandoemfamilia disse...

Lindo poema e bem de acordo com algumasquestõesque vivenciamos em relação ao !robotismo".

bjs

Néia Lambert disse...

Cacá, posso até estar sendo radical demais, mas acho que os modismos mostram bem a mediocridade de espírito de algumas pessoas que precisam sempre de algo para seguir, não possuindo nenhuma vontade ou estilo próprio, sabem apenas copiar, triste isso!

Um abraço.

Anônimo disse...

Oi Cacá, vc já nunca fez um Mapa Astral? Seria interessante vc fazer. Porque se não souber pelo mapa o livro não vai dizer qual planeta vc tem retrógrado e assim avaliar melhor sua lição cármica. Abraço Cynthia

Toninho disse...

Que beleza amigo, este poema ja muito me encantou nos Dramas de Bethania e aqui ilustra perfeitamente as reflexões dobre esta onda que quer me pegar, mas que estou sempre furando.É isto, estou sempre indo por ali e não por aqui.Parabens por esta bela lucidez.Meu abraço de toda paz e luz.

Miriam de Sales disse...

Que presente neste fim de noite meu amigo!Esse poema sou eu.
Que desde cedo nunca vou para aonde me mandam,nunca fiz o que n/ queria fazer,nem liguei prá convenções ou sociedade.
Não, não vou por aqui! é o meu lema.Visto como diferente?Escrachado ás vezes? Muito só,quse sempre?
Dane-se!
Sinto pulsar nas minhas veias o sangue dos q/ se apartam.
Uma loba da estepe cada vez mais,com a idade ,consciente do preço a pagar.
Vc é demais,amigo!
No jeito de interpretar a vida. bjs

Anônimo disse...

É assim mesmo que acontece com o "impopular" do modismo. Neste caso, a vida torna-se atributo dos "capazes" de cumprirem as determinações da cultura hegemônica. Precisamos de higiene social. Abraços!

Tais Luso de Carvalho disse...

Amigo Cacá, é verdade, poemas não requerem interpretações, são sentidos. Seu poder é mexer com nossos sentimentos, nossos pensamentos. Compreendo os poetas, muitas vezes dizem algo e uma alminha danada entende outra - que nada tem a ver - e acaba com a fantasia...

Quanto ao seu texto, enquadro-me nele: quando a coisa se torna por demais modernosa, caio fora; talvez seja um ato de rebeldia de não seguir a boiada. De seguir as minhas convicções, a minha estrada.

Onde está a minha liberdade de não gostar de novelas, de programas sei lá de quem, de certos filmes, de certas músicas e de certa gente?

Se coisas assim significam estar fora do mundo, estou muito longe, pelo menos deste que critica, que destrói, que julga, que satura com suas imposições por vezes muito duvidosas.

Beijão, belo texto como sempre.
Tais Luso

Misturação - Ana Karla disse...

Muitos de nós pensamos com outra frequência, mas infelizmente a maioria segue um único caminho a "ter".
Sou muitas vezes tida como excêntrica, pois estou sempre a discordar do "óbvio", que para mim não tem nada disso.
Se estar antenada é "ter" o mais moderno, então estou fora de sintonia.
Cacá, penso nesse seu pensamento.
Esse poema, diz mesmo como você diz.
Gostei muito.
Bom final de semana
Xeros

Celina disse...

Oi Cacá, tudo de bom para vc e familia, vim te visitar e agradecer a tua visita que me dar muito prazer. Este poema tem muito de nós, seguir a nossa vida, se não deu certo ficou a lição, o importante é continuar vivendo e ir aprendendo com a vida. Um abraço, Celina

lis disse...

Oi Cacá
Clarice Lispector escreveu que "em nao entender é que é belo"
tem poemas que nao há como interpretar, entender, basta sentir.
Bom o texto, como todos que leio aqui.
Um grande abraço e uma bela noite pra voce

Lilian Valeria disse...

Oi Cacá,
Belíssimo texto! Vi esse poema ser recitado pelo Paulo Gracindo, num programa da rede Cultura e me encantei. Obrigada por me proporcionar novo encantamento.
Lilian

Lilian Valeria disse...

Oi Cacá,
Belíssimo texto! Vi esse poema ser recitado pelo Paulo Gracindo, num programa da rede Cultura e me encantei. Obrigada por me proporcionar novo encantamento.
Lilian

Lúcia Soares disse...

Uma rebeldia que eu gostaria de ter, Cacá. Ando sempre por lugares que determinam...
Abraços!
Boa semana!

Sheilla Liz disse...

Olá Cacá!

Como sempre uma delícia ler-te, interpetar ou não interpretar, ler, não-ler, reler, rever
e ver de novo,
e de novo.
Esse poema é lindo e todas as verdades cabem nele.

Um grande abraço amigo!

Carla Piva disse...

Cacá... de poetas e loucos todos temos um pouco, sou suspeita para falar pois não sei se tenho mais de loucura ou de poesia...Sou um peixe fora d'água, sempre, talvez por isso seja incompreendida muitas vezes mas, prefiro a incompreensão do que ser mais um nesse mundo.Você, como sempre, perfeito em tuas palavras e...viva os diferentes, rssssss beijos, amigo!

Web Statistics