segunda-feira, 6 de setembro de 2010

BOM EM QUALQUER ÉPOCA - O NOVO HOMEM


Há tanta produção literária por esse mundão, tanta coisa que tanta gente tem acesso e muito mais coisa que tanta gente não tem que pelo bem do conhecimento humano e da literatura, acho que toda oportunidade que tivermos para aumentar a visibilidade de textos bons não pode ser perdida. Selecionei alguns que acho que precisam de quando em vez ser divulgados pelas suas qualidades inumeráveis. É só mais uma forma de dar ainda mais vida à sua imortalidade. Só lendo para qualificar. E isso cabe ao leitor.

O NOVO HOMEM

O homem será feito
em laboratório.
Será
tão perfeito
como no antigório.
Rirá como gente,
beberá cerveja
deliciadamente.
Caçará narceja
e bicho do mato.
Jogará no bicho,
tirará retrato
com o maior capricho.
Usará bermuda
e gola roulée.
Queimará arruda
indo ao canjerê,
e do não-objeto
fará escultura.
Será neoconcreto
se houver censura.
Ganhará dinheiro
e muitos diplomas,
fino cavalheiro
em noventa idiomas.
Chegará a Marte
em seu cavalinho
de ir a toda parte
mesmo sem caminho.
O homem será feito
em laboratório,
muito mais perfeito
do que no antigório.
Dispensa-se amor,
ternura ou desejo.
Seja como flor
(até num bocejo)
salta da retorta
um senhor garoto.
Vai abrindo a porta
com riso maroto:
"Nove meses, eu?
Nem nove minutos."
Quem já conheceu
melhores produtos?
A dor não preside
sua gestação.
Seu nascer elide
o sonho e a aflição.
Nascerá bonito?
Corpo bem talhado?
Claro: não é mito,
é planificado.
Nele, tudo exato,
medido, bem-posto:
o justo formato,
o standard do rosto.
Duzentos modelos,
todos atraentes.
(Escolher, ao vê-los,
nossos descendentes.)
Quer um sábio? Peça.
Ministro? Encomende.
Uma ficha impressa
a todos atende.
Perdão: acabou-se
a época dos pais.
Quem comia doce
já não come mais.
Não chame de filho
este ser diverso
que pisa o ladrilho
de outro universo.
Sua independência
é total: sem marca
de família, vence
a lei do patriarca.
Liberto da herança
de sangue ou de afeto,
desconhece a aliança
de avô com seu neto.
Pai: macromolécula;
mãe: tubo de ensaio
e, per omnia secula,
livre, papagaio,
sem memória e sexo,
feliz, por que não?
pois rompeu o nexo
da velha Criação,
eis que o homem feito
em laboratório
sem qualquer defeito
como no antigório,
acabou com o Homem.
Bem feito.


Carlos Drummond de Andrade
Esta crônica/poema foi escrita em 1967, numa coluna que o poeta tinha no Jornal do Brasil (RJ)

7 comentários:

Anônimo disse...

Oiiiiiii Cacá,
"... eis que o homem feito
em laboratório
sem qualquer defeito
como no antigório,
acabou com o Homem.
Bem feito."
Ainda precisa dizer mais? Obrigada por compartilhar essa pérola de nossa literatura. Bjss

chica disse...

Que maravilha conseguiste achar,Cacá...Bem atual sempre.abração,linda semana,chica

Elayne Aguiar disse...

Muito criativo!...o jogo de palavras, a fluência do texto, gostoso de ler, inteligente, Parabéns! Ah! E muito atual!

Hugo de Oliveira disse...

Ótima postagem amigo. Fica cada dia mais difícil influenciar as pessoas a ter o gosto pela leitura viu...principalmente os adolescentes e jovens. Como educador fico muito triste ser essa a realidade.


Abraços

Lua Nova disse...

Um achado e tanto... e é fato, as crianças não tem mais "tempo" pra ler... e os adolescentes então? Que lamentável é isso...
Obrigada por compartilhar esse Drummond que, apesar de ter sido feito em 1967, poderia pelo conteúdo, ter muito bem ter sido feito ontem.
Beijokas.

Toninho disse...

Parabens Zé por esta decisão de buscar no bau,uma coisa bela do conterraneo e compartilhar com todos,neste sonho de fazer um pais de leitores,que nao pode morrer. Nao tenho como não lembrar de Gil:"O cérebro eletrônico faz tudo/
Faz quase tudo/Faz quase tudo/Mas ele é mudo"
Meu abraço amigo e bom feriado da Independencia(sic).

Jaime Guimarães disse...

É, Cacá, é bom divulgar essas pérolas e para percebermos o que é um texto de autor "imortal" - fosse escrito hoje estaria correto e fosse escrito no futuro também estará correto.

Salve Drummond, que provavelmente leu Huxley!

Abs!

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