O ônibus seguia naquela desembestada fúria que é habitual e os passageiros naquela indiferença habitual também. Ninguém mais liga a não ser em seu olhar perdido na falta de horizonte; a não ser os ouvidos no seu mp3, mp4, esses sonzinhos de espantar tédio que carregamos por aí em vez de um papo com alguém que encurte a viagem; a não ser também se houver uma batida. Aí lembram do motorista. Pois foi passando exatamente em frente ao corpo de bombeiros que alguém avistou um corpo civil estendido no chão. Mais de uma voz ao mesmo tempo gritou: - Olha lá, tem um homem morto ali! O outro coro, nervoso, já vociferava com o habitual mau humor: - Essas brincadeiras de 1º de abril não pegam mais, não! Mas era de verdade. O corpo estava lá, para a habitual observação indiferente de quem passava. Tem uma ação coletiva e disputada, que não é de mentira. A de chamar o resgate. 192, 193 e está cumprida a nossa cidadania de pedra. Todos querem ser o primeiro. Mas o corpo continua lá, frio, no 1º de abril e nos outros dias da verdade dura. Com pressa, foi cada um pro seu lado.
Tá lá o corpo
Estendido no chão
Em vez de rosto uma foto
De um gol
Em vez de reza
Uma praga de alguém
E um silêncio
Servindo de amém...
O bar mais perto
Depressa lotou
Malandro junto
Com trabalhador
Um homem subiu
Na mesa do bar
E fez discurso
Prá vereador...
Veio o camelô
Vender!
Anel, cordão
Perfume barato
Baiana
Prá fazer
Pastel
E um bom churrasco
De gato
Quatro horas da manhã
Baixou o santo
Na porta bandeira
E a moçada resolveu
Parar, e então...
Tá lá o corpo
Estendido no chão
Em vez de rosto uma foto
De um gol
Em vez de reza
Uma praga de alguém
E um silêncio
Servindo de amém...
Sem pressa foi cada um
Pro seu lado
Pensando numa mulher
Ou no time
Olhei o corpo no chão
E fechei
Minha janela
De frente pro crime...
Veio o camelô
Vender!
Anel, cordão
Perfume barato
Baiana
Prá fazer
Pastel
E um bom churrasco
De gato
Quatro horas da manhã
Baixou o santo
Na porta bandeira
E a moçada resolveu
Parar, e então...
Tá lá o corpo
Estendido no chão...
2 comentários:
"192, 193 e está cumprida a nossa cidadania de pedra. Todos querem ser o primeiro."
Talvez pra dar entrevista na TV como o "Fulano de tal que PRIMEIRO prestou socorro à vítima". Eu já vi um caso parecido com este na rua e um sujeito que não parava de falar: "Fui eu que liguei primeiro, fui que chamei o SAMU".
E nem me fale em ônibus, pois só de lembrar nestes coletivos já vem à mente as barbaridades que cometem aqui em Salvador.
abs! E a trilha sonora é de "prima"!
Oi Cacá!
Essa indiferença social, mas que é perigosamente íntima, descrita no seu texto, é responsável por uma série de prejuízos morais e cívicos. Talvez seja cansaço puro do cidadão. Cansaço da corrupção, do abuso de poder,da injustiça, da impunidade, da futilidade que impera. Essa indeferença, que leva também ao refúgio, à introspecção, causa outro dano sério: o abandono. Parece que as pessoas estão tão desgostosas que nem ligam mais para o errado, simplesmente abandonaram a humanidade e o senso de responsabilidade que cada um tem por tudo e por todos.
Uma pena! Bem que isso poderia ser mentira...
Adorei o post.
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