sábado, 23 de fevereiro de 2008

QUAL É A SUA?

QUAL É A SUA?

Há momentos em que dá uma vontade de expressar alguma opinião ou falar de coisas que nos angustiam e até mesmo que nos alegram ou aborrecem! Às vezes nos faltam palavras ou oportunidade ou ainda vontade. De repente, nos deparamos com algo que alguém fez por nós. Ocorre de fazê-lo com tanta maestria que dá até uma pontada de inveja, do tipo: “puxa vida, por que não escrevi isso antes? É exatamente o que eu sinto”. Foi o que me ocorreu dia desses, com um magnífico poema de Carlos Drumond de Andrade, que encontrei numa página de jornal, falando sobre nós como massa de consumo fácil, imediato e sem significância humana, no sentido mais doído por estar num poema e não numa matéria opinativa ou resenha ou dissertação de alguém desabafando nalguma publicação. Vejam só se não é essa a sensação que sentimos de falta de essência nossa e falta do outro, de relações mais sabidas e menos tidas:

EU ETIQUETA

Em minha calça está grudado um nome

Que não é meu de batismo ou de cartório

Um nome... estranho.

Meu blusão traz lembrete de bebida

Que jamais pus na boca, nessa vida,

Em minha camiseta, a marca de cigarro

Que não fumo, até hoje não fumei.

Minhas meias falam de produtos

Que nunca experimentei

Mas são comunicados a meus pés.

Meu tênis é proclama colorido

De alguma coisa não provada

Por este provador de longa idade.

Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro,

Minha gravata e cinto e escova e pente,

Meu copo, minha xícara,

Minha toalha de banho e sabonete,

Meu isso, meu aquilo.

Desde a cabeça ao bico dos sapatos,

São mensagens,

Letras falantes,

Gritos visuais,

Ordens de uso, abuso, reincidências.

Costume, hábito, permência,

Indispensabilidade,

E fazem de mim homem-anúncio itinerante,

Escravo da matéria anunciada.

Estou, estou na moda.

É duro andar na moda, ainda que a moda

Seja negar minha identidade,

Trocá-la por mil, açambarcando

Todas as marcas registradas,

Todos os logotipos do mercado.

Com que inocência demito-me de ser

Eu que antes era e me sabia

Tão diverso de outros, tão mim mesmo,

Ser pensante sentinte e solitário

Com outros seres diversos e conscientes

De sua humana, invencível condição.

Agora sou anúncio

Ora vulgar ora bizarro.

Em língua nacional ou em qualquer língua

(Qualquer principalmente.)

E nisto me comparo, tiro glória

De minha anulação.

Não sou - vê lá - anúncio contratado.

Eu é que mimosamente pago

Para anunciar, para vender

Em bares festas praias pérgulas piscinas,

E bem à vista exibo esta etiqueta

Global no corpo que desiste

De ser veste e sandália de uma essência

Tão viva, independente,

Que moda ou suborno algum a compromete.

Onde terei jogado fora

Meu gosto e capacidade de escolher,

Minhas idiossincrasias tão pessoais,

Tão minhas que no rosto se espelhavam

E cada gesto, cada olhar

Cada vinco da roupa

Sou gravado de forma universal,

Saio da estamparia, não de casa,

Da vitrine me tiram, recolocam,

Objeto pulsante mas objeto

Que se oferece como signo dos outros

Objetos estáticos, tarifados.

Por me ostentar assim, tão orgulhoso

De ser não eu, mas artigo industrial,

Peço que meu nome retifiquem.

Já não me convém o título de homem.

Meu nome novo é Coisa.

Eu sou a Coisa, coisamente.

Carlos Drummond de Andrade.

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