Corria o ano de 1986 e a minha primeira filha estava esperando para vir ao mundo. E eu não podia me dar ao luxo de muitos gastos. A gravidez era de risco e o inesperado é sempre companhia da temeridade. Ainda que não seja nenhuma tragédia anunciada, inspira poupança. Juntando isso com os sobressaltos de conviver com um plano econômico a cada mês e reajuste salarial apenas uma vez por ano, temores havia sempre. Imagine comprar hoje um quilo de tomates a um real e amanhã ele ser dois, depois dois e cinqüenta. Era assim que funcionava o tal do dragão da inflação, mesmo com o Sarney, na época presidente e sem atos secretos, convocando a população para agir como fiscal nas ruas para vigiar os preços. Quem trabalhava o dia inteiro mal tinha tempo de fiscalizar seu emprego ameaçado a todo momento.
Mesmo assim eu não resisti à tentação e comprei o meu primeiro AURÈLIO, oferecido em quatro prestações fixas (encontrar prestação fixa era como ganhar prêmio em sorteio). E ele solidariamente resistiu, talvez como o maior patrimônio que adquiri em minha vida - pelo menos em meu conceito de valor. Afora as minhas duas filhas, mas isso não se conta como patrimônio intelectual nem material. É muito mais que possam explicar nossas teorias de apego. Não entro no mercado com meus sentimentos postos a avaliações. De lá para cá ele me acompanhou em boletins sindicais escritos quase que diariamente, me acompanhou durante toda a minha graduação e mudou um sem número de vezes de casas e apartamentos. O cuidado quando de seu manuseio era como se estivesse transportando cristais. Sua encadernação é de linhas costuradas.
Agora está chegando ao seu esgotamento físico imposto pelo tempo, esse implacável e impassível senhor das razões e loucuras, das alegrias e das amarguras, assim como faz com gente feita de tutano e osso, neurônio e outros tecidos sem costura. Alguém pode dizer: mas com a wikipédia aí disponível, com um google de todo tamanho, que tolice! Para os muito leigos eles realmente satisfazem. Já para quem se relaciona quase ludicamente e lubricamente com as palavras sabe do que falo. Nele quando o significado traz algum sinônimo lírico, poético ou literário há citação de traços ou trechos de obras literárias exemplificando. Nele há etimologia, há pronúncia. Sem contar que na página em que se está pesquisando algum verbete, há sempre a tentação de namorar outro ali do lado, acima ou abaixo por pura curiosidade ou aquela quedinha inevitável para uma outra palavra. E para quem gosta de pesquisa, a wikipédia não é algo ainda totalmente confiável Enfim não dá para descrever o prazer das consultas quase terapêuticas, da mesma forma que dói a separação.
Ele se vai. Não há mais remendo possível, reencadernações. Não há quem o restaure mais originalmente sem cobrar um valor de uma peça tombada pelo patrimônio histórico, artístico e cultural como merece, aliás. Muito ao meu gosto, mas longe de minhas posses.
E minha filha, vendo o meu drama patético, resolveu me presentear com outro, já que carrega o simbolismo de seu ano de nascimento. Não gosto que se apiedem de mim, mas acho que ela ficou com um dó danado.
4 comentários:
Cacá:
Hosje postei este texto no Duelos. Muito bom!
Amanhã posto Despedida, ok?
Pode mandar quantos textos você quiser, não há limite para postagens. A única regra que sigo, normalmente, é publicar um post de cada autor por dia, para que mais pessoas possam lê-lo; mas em situações especiais (como no dia do Tema do Mês), a regra não é utilizada.
Valeu mesmo!
Abração e tudo de bom!
Cacá:
Hoje foi postada sua poesia Despedida. Muito boa também!
Valeu mesmo!
Abração!
Meu caro amigo,como entendo o seu dilema!passei p/muitos desses,como qdo empenhei grande parte do meu humilde salário de professora p/comprar "A comédia Humana",completa c/comentários de Paulo Ronái.
Mas,até hoje,35 anos depois ela ainda espia prá mim,na estante mais alta da biblioteca;arrependimento?Nenhum... bjs
Cacá, valeu pela leitura do textinho meu lá no Duelos. Abraços, felizes festas!
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