Alguns irmãos queriam achar um culpado. Não falavam abertamente, mas deixavam sempre uma suspeita em seus comentários acerca daquela noite fatal em que a Eleonora havia dormido no hospital com o pai recém operado da próstata. A cirurgia havia sido um sucesso. Ele havia recebido uma sonda para os primeiros dias do pós-operatório e levantou-se bruscamente da cama após o efeito da anestesia, que lhe deixara meio desfalecido, meio acordado, e, rasgou o local da sonda, abrindo-lhe uma pequena ferida que veio a ser contaminada pelas bactérias residentes nos hospitais todos. Ela cochilara honestamente. Impunemente, na visão de alguns irmãos que queriam um culpado.
Seu Amador nunca mais sairia da posição horizontal. A infecção lhe atingira, primeiro o local do incidente, espalhando-se rapidamente pelos órgãos internos a ponto de sacrificar-lhes os rins e precisar hemodiálise. Sua última manifestação de lucidez foi revelar o desejo de morrer depois dos oitenta anos. Tinha ainda 78. Os médicos fariam todos os esforços possíveis, mas nada podiam garantir. Cada dia era uma alegria alternada com um susto, um silêncio compreensivo diante do boletim médico dizendo “estável” sobre seu quadro clínico. Eu sempre achei esse negócio de estável um assombroso meio termo entre a incerteza de melhora e o inevitável velório amanhã, contradizendo com a possibilidade de recuperação e a inexorável possibilidade de agravamento do quadro de saúde.
Dias, semanas e meses nesse vai e vem , e dois ou três desenganos fatais previstos pelos médicos, nunca abalaram a fé da família. Até aquela quarta feira que foi chamado pelo Dr. Dajon, o filho mais velho para comunicar do inevitável óbito, nos seguintes termos: - Seus órgãos vitais não respondem mais às terapêuticas. Inútil insistir. Parte considerada mais íntegra emocionalmente da família naquele momento, fui chamado para providenciar os funerais. Genros nesses momentos são de grande valia. O sogro escolheu minha casa para ficar quando resolveu operar, bem distante de sua cidade. Acredito que não quisesse demonstrar nenhuma fraqueza a seus amigos lá da distante zona rural onde residia. Combinei tudo com o agente funerário, que não escondia sua satisfação diante de um novo fornecedor de renda para seu negócio, apesar de manter o semblante condescendente com a dor de algum parente consanguíneo que se aproximasse para ver nosso acerto. Paguei uma parcela do serviço de embalsamamento, traslado, e acessórios mortuários e combinamos de acertar o restante no dia seguinte ao enterro.
O dia amanheceu com Seu Amador naquele estado vegetativo e com todas funções funcionando a contento. Dia esse que durou exatos quatro anos. Pois seu Amador só veio a falecer aos oitenta e dois e creio mesmo que por desistência própria da vida. Estava acometido de parkinson e alzheimer, mas com batidas do coração em ritmo satisfeito, com digestão e defecção funcionando direitinho.
O espanto do agente da funerária é que foi imenso quando resolvemos desfazer do trato e ele me devolver o cheque.
- Não acha melhor esperar mais um pouco?
- Ora, diante desse constrangimento, devolva-me. Se acontecer, pode deixar que não vou procurar seu concorrente.
Encontrei algum tempo depois, num supermercado, o médico que havia fornecido a sentença inverossímil.
- Eu queria compartilhar meus sentimentos pela perda do seu sogro. Há tempos não nos vemos!
- Doutor, se ele estivesse falando, iria querer lhe agradecer. Foi só o que consegui responder.
3 comentários:
Cacá:
Quer dizer que seu sogro viveu dois anos a mais do que queria!
Esse médicos hém! Bem eses médicos deixa prá lá.....
Mais uma bela postagem "Seu Mineirim". Gostoso ler, a gente vai escorregando as vistas quase sem piscar que chega arder os olhos.
Parabéns.
Cacá, também tenho assombros com esse "quadro estável".
Estável de que? Dependendo do caso, estável na mesma m***, talvez?
Olha, meu avó com um monte de prognósticos de médicos, foi morrer lá com seus 84 depois de uns 10 de estado quase vegetativo...ou 'estável'.
abs!
Parabéns, Cacá
adorei seu blog.
Vou linkar ao meu.
Seu sogro venceu a médicina kkkkkk
Homem duro, sô.
abraço
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