domingo, 7 de setembro de 2008

CASO DO RELÓGIO

Dia das mães, meu pai presenteou a minha com um fantástico relógio de prata, Citzen, moderníssimo e, apesar de pequeno, feminino - me disseram, pois é costume separar coisas de gênero. Ficou sob minha guarda e uso. Minha mãe dizia que os movimentos do relógio faziam-lhe subir a pressão. Desculpa educada para a recusa. Ela não gostava de se ornamentar muito com jóias. Um brinco, a inseparável aliança e nada mais. Meu zelo era proporcional à vontade de ter um relógio. Recomendações dela também não faltaram. Afinal, usando ou não, era presente e disse para que cuidasse como se fosse meu. Antes dissesse para cuidar como se fosse dela.

No centro da cidade era comum trambiqueiros ficarem simulando apostas com bolinhas de papel sob tampinhas de garrafa. Ficavam dois ou três comparsas em volta do golpista. Ao aproximar-se uma vítima em potencial, a aposta simulada era de acordo com o que portava o incauto. Se nada à vista, era dinheiro. Se algum chamariz como alianças, cordões de ouro ou relógio, essa era a bola da vez. No meu caso foi relógio. Parei para ver na inocente curiosidade e com a ganância incontrolável de ter o meu próprio relógio sem gasto e devolver o precioso presente da minha mãe, mesmo que fosse somente para guardá-lo e ela poder garantir a boa pressão dos perseguidos 12x8 . Punham três tampinhas emborcadas sobre uma folha de jornal dobrado e sob uma delas estava a bolinha de papel. Embaralhavam e, quem adivinhasse de uma só tentativa, levava o prêmio da aposta. Simularam entre si duas vezes e o estranho, levou por duas vezes dinheiro e relógio. Me encorajei e apostei o meu contra o dele. Um lindo Orient, pulseira cromada e grande, relógio do gênero masculino. Um sonho de adolescente. Nem adianta tentar justificar a trapaça que julgo ter ele feito enquanto me abaixei para tirar o relógio do pulso e dar alguém para segurar. A minha certeza era absolutíssima. Desvirei a tampinha e nada. Bolinha nenhuma, relógio nenhum. Nem o da minha mãe, nem o dos meus sonhos.

O desespero tomou conta de mim a ponto de demorar cinco minutos entre decidir se chamava a polícia ou se ia embora. Aposta é aposta. Aprendi desde cedo que honrar os compromissos é garantia de retidão. Saí pensando em como dizer isso a minha mãe. Me ensinaram também não mentir. Omiti. Me calei até o dia em que ela deu falta do relógio. Disse que havia sido assaltado em um ônibus. Se ela acreditou nunca vou saber. Dei a ela, pouco antes de seu falecimento um novo, de natal, que coincidia com seu aniversário. Tentativa de me redimir. Não aliviou a consciência. Nem ela usou.

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