quinta-feira, 5 de maio de 2011

O PERDÃO

“A imputação de culpa flagela o perdão.”
(Arcanjo Isabelito Salustiano)


Gleicineide Aparecida, 28, trabalha aqui uma vez por semana e me chama de Seu Moço. É a mais velha de três irmãos, Dorineide, Erival e Emerval. Vieram para a capital depois que a mãe abandonou o pai. Ele bebia muito e sempre e espancava toda a família de vez em quando.

De vez em quando também ela gosta de ficar me contando suas histórias. Disse que está procurando alguma coisa que a faça perdoar o pai, mas está difícil. Toda vez que se lembra, sempre a muitas risadas - que não sei se são de sarcasmo ou de nervoso, fala compulsivamente. Porque aflita ela fica é na hora que está lembrando. Não passa uma semana sem que deixe cair um copo, um prato ou quebra uma vassoura de tanta força que imprime na varredura. Acho que é de nervoso mesmo. O pai morreu aos 42 anos de cirrose. Parece que ficou um ranço das maldades, do desamor. A gente se vira na vida mas a nódoa fica para sempre. Admitindo-se ou não, manifesta-se em ação ou pensamento falado. Mais dia menos dia. Quisera fosse sublimado em outra transcendência que cura.

 - Graças a Deus, seu moço, eu não tenho remorso de falar assim não. Tá vendo essas cicatrizes aqui no meu braço? Pois é, tem mais um monte em outros lugares mas eu não posso mostrar todas, não. É tudo queimadura de cigarro que ele me fez.
Já escutei caso de cabo de enxada quebrado em suas costas, já ouvi do frango que ele comprava e comia as partes boas e deixava apenas as asas e os pés e pescoço para os filhos, já ouvi muita ruindade que o homem fazia.
– Da última, vez, seu moço, eu saí escondida para ir dançar num forró que havia lá na minha cidade e foi quando ele foi atrás de mim e me trouxe pra casa a chicotadas com todo mundo me vendo apanhar no meio da rua. Meu irmão, o Emerval, saiu de casa quando fez 16 anos. Ficou muito forte e disse que ia embora para não bater nele. Se o visse ao menos ameaçar a nossa mãe ou um de nós, ia partir pra pancadaria até acabar com ele. Achou melhor não sujar seu nome na polícia e deu no pé. Foi lá pras bandas de São Paulo. Já lhe contei que de vez em quando ele ficava bonzinho, me dava uma nota de 1 real e meia hora depois vinha pedir de volta para tomar uma cachaça? Eu acho que era! Já nem gastava mais quando isso acontecia, pois sabia que se pedisse de volta e eu não tivesse, ia apanhar. Sabe, seu moço, se esse negócio de má criação gerasse mau caráter, eu acho que ia ser uma bandida.

- Se minha mãe carinhava a gente? Ela nem tinha tempo, seu moço! Trabalhava na roça também. Só quando a gente parava para comer alguma coisa ela dava umas olhadinhas pra gente com cara de carinho. Cuidava direitinho, do jeito dela. No entanto estou ai, trabalhando desde os meus 9 anos e feliz. Feliz, não, alegre e de bem com a vida. Feliz mesmo vai ser no dia que eu casar com o Juninho. Eita homem bão, seu moço!

- Mas voltando ao trabalho, a gente capinava roça o dia inteiro para ganhar trinta e cinco reais por semana. As mulheres mais velhas ganhavam 50. Pouca diferença, né? Mas era uma exploração danada dos donos das fazendas lá pelas minhas bandas. Era não, é até hoje. Essa lei aí que inventaram de assinar a carteira do povo da roça, pelo menos por lá não funciona de jeito nenhum. Voltando no pai, eu me vinguei de uma certa forma, seu moço. Pouco antes de minha mãe decidir mudar pra cá, eu aproveitei um dia em que ele estava desmaiado de tanta cachaça e dei-lhe uma sova de vassoura, que nem ele fazia comigo. Se estivesse vivo ia estar sentido dor até hoje. Desde a época que ele morreu, estou tentando achar um motivo para o perdão, seu moço. Acho que eu ficar falando assim com o senhor, eu vou sentindo um alívio danado aqui dentro e vou perdoando ele aos poucos.

31 comentários:

Marcio JR disse...

Bom dia, Cacá.

Meu amigo, que história densa. E olha, tão real quanto comum. Não é nada difícil encontrar famílias por aí que se perderam, separaram, por motivos exatamente iguais a estes relatados por aqui.

O vício da bebida, assim como qualquer outro, é um verdadeiro cancro na sociedade.

E quanto ao perdão, talvez ele venha com a catarse que a personagem faz, ao conversar com o patrão. Algo tão simples de ser feito, porém, tão difícil de encontrar alguém que se disponha a apenas ouvir, não é?

Uma narrativa sensacional, meu amigo. Grande abraço, Cacá.

Marcio

boutique de ideias disse...

Oi Cacá!!!

Poxa que relato, hein!! Coitada dela que nao teve aquele brilho que a memória da infancia nos causa, aquelas lembrancas de brincadeiras, artes e afagos, o carinho da família... Perdao? Alguns casos se faz necessário e é até bonito, outros, no caso dela, perdoar pra que? Eu nao acredito em amor incondicional, maltratou? Só fez mal durante a vida? Eu viro as costas mesmo, sem direito a perdao e choradeira!
Adorei amigao, embora triste (ainda que a protagonista o negue), ler um conto real, desses que acontece o tempo inteiro no mundo todo, e ver que essas tragédias nao acontecem apenas na ficcao...
Beijo grande!

chica disse...

Puxa, que trsite história e tantas vezes verdadeira...O perdão nesse caso é difícil...Ficará sempre uma marca...Ninguém é santo pra esquecer isso.

Não o perdoaria mesmo...Ficaria em meus momentos "ariranha"! ou seja, incorporada e braba ao lembrar dele...abração,chica

Misturação - Ana Karla disse...

Uma grande marca.
Perdoar não é tão fácil assim, mas é preciso tentar de todas formas, pois bem sabemos que faz mal a nós mesmos.
Eu já "perdoei" uma pessoa muito próxima, mas ainda tenho mágoa. E se essa pessoa sai da linha comigo, eu sempre lembro do acontecido.
Então não perdoei mesmo, não é?
Mas deixa pra lá. Vou tentando, igual essa moça.
Bom dia Cacá.
Xeros

Kunti/Elza Ghetti Zerbatto disse...

Difícil perdoar uma situação dessas.
Infelizmente são casos mais comuns do que a gente pensa.
Onde tem bebida alcóolica consumida como água só pode ter desavença.
Triste relato de vida real.
Parabéns.
abraços

Rô... disse...

oi Cacá,

como não se envolver,
com um relato de vida desses?
quantas famílias vivem esse drama,
por ter em seus lares um riacho de alcool, de todos os tipos para disfarçar a verdadeira causa do desamor...
é mais fácil enfiar a cara na cachaça,
do que sentar e tentar resolver os problemas,
e usar a desculpa da embriaguez para resolver tudo na pancadaria...

perdão nesse e em outros tantos casos,
não acho impossível,
mas acredito que precisa de muito tempo e muita vontade,
para dissolver tantas mágoas e tantas marcas...

beijinhos

Anônimo disse...

Bom dia, Cacá
Ainda bem que ele tem o Juninho hein!
Pra que perdoar, acho muito difícil, num caso assim. Mas essa catarse que você oportunizou, foi providencial. Que coisa, né, que mundo-cão esse do vício. A família fica sempre à mercê, sempre carregando o fardo.
Amei a narração, li sem sentir. Quando terminou... eu queria continuar lendo...
Bjsss

Anônimo disse...

Se se pensar no perdão como desculpa (tirar a culpa)ele não existe. Mas,ouvi dizer acerca de um perdão que deve ocorrer de "você para com você mesmo". Não sei. O fato é que você, Cacá, através da irreverência e da criatividade impressionante, é capaz de dar senso de verdade ao que até então fazia parte do terreno do mito. Abraços!

pensandoemfamilia disse...

Caca
Esta que~stão é tão complexa que envovve o aprisionamento emocional da pessoa tolhindo seu desenvolvimento. Estou fazendo um curso Perdão e fa´mília, abordagem sistêmica. O ato é imperdoável, mas a pessoa é que pode ser perdoada, mas paratal é necessário o desejo de ser perdoado, nestaperspectiva. No entanto, é muito importante liberar-se para se poder seguir adiante.
Abraços.

Yasmine Lemos disse...

Quando fazem com quem amo,quando me ferem profundo,eu não perdoo,seria hipócrita em dizer que a sublimação faz parte do meu dicionário.Amo demais e não aguento injustiças.Quando me questionam sobre isto ,digo que Jesus é Jesus filho de DEus, eu sou uma pobre mortal cheia de defeitos.Ainda mais depois que fui mãe.
Seu livro é maravilhoso viu?!
um grande abraço Cacá!

Nilce disse...

Oi Cacá

Quanta tristeza neste relato.
O fato de não perdoar machuca mais ainda. O sofrimento transforma o coração das pessoas. Parece que se acostumam tanto que qualquer carinho é muito.
Passam a achar que sofrer faz parte da vida.

Bjs no coração!

Nilce

Maria Auxiliadora de Oliveira Amapola disse...

Boa tarde, querido poeta Cacá.

Menino... Eu estou sem palavras.
Você me fez rir, me fez chorar, me fez aplaudir.

Parece que estou vendo a "Gleicineide Aparecida" no seu cotidiano.

"Se perdoar é esquecer, perdoar é utopia, ou amnésia"

A gente aceita, mas não esquece.
Quanto sofrimento!! Um grande abraço pra Gleicineide.

Você contou essa história de um jeito... BRAVO!!

Com muita admiração, um grande abraço.

Maria Auxiliadora de Oliveira Amapola disse...

Eu acredito no perdão que vem de Deus.

O resto é a terapia do desabafo, e da compreensão.

Mimirabolante disse...

Um assunto muito delicado:o perdão
Eu sou a favor de se perdoar,porém,é um sentimento que ela tem que tirar de dentro dela e que não é fácil !!!!
Talvez ao se colocar dentro da situação dela,fique mais fácil alguém ajudá-la......ou talvez,o tempo !!
Adorei ver vc lá em casa.....estou tendo dificuldade em acessar alguns blogs....estou com uma conexão péssima.....leio e não consigo comentar.....bjcas

Anônimo disse...

E a gente escuta essas histórias tristes a vida toda.
Que coisa triste!
Como disse o Marcio:
O vício da bebida, assim como qualquer outro, é um verdadeiro cancro na sociedade.
Bjs.

Toninho disse...

Ah, meu amigo, eu ja vi muitas destas coisas nesta vida e ainda vejo.Familias despedaçadas pela danada da embriaguez sem graça, que maltrata tanto e faz estes traumas.E perdão é coisa mesmo dificil de digerir quando a alam esta enojada.Muito bom texto.Meu abraço.

everaldo disse...

Todos estes maus tratos, não foram para ferí-la, mas sim, para que ela aprendesse a perdoar.

http://www.radionatureza.com/

lis disse...

Cacá foi demais esse conto , esse desabafo da Gleicineide.
O que o vício é capaz de fazer com as familias.Uma tristeza.
Por muito menos a gente nao conseue perdoar, imagina esse sofrimento.
Que tenha encontrado de fato a felicidade ao lado do Juninho dela.
Muito chocante Cacá e real, como se vê .

abraços

Floripa disse...

Oi Cacá!!

Cheguei aqui através da resenha da Geyme, gostei muito do que li. Espero muito em breve, entrar na lista de suas leitoras!
Parabéns!!
Beijo e sucesso!

felipebrandao85 disse...

Olá, Cacá; Vim conhecer o seu cantinho e dar-lhe meus parabéns pelo seu livro. Acabei de ler a resenha no blog da Geyme e gostei muito do que encontrei por lá! Desejo muito sucesso pra vc, e aviso que já coloquei o Arcanjo em minha lista de leitura. Beijos!

Mariazita disse...

Boa noite, Cacá
Este texto prendeu a minha atenção de princípio a fim.
Foca um tema que me é particularmente odioso - a vioência doméstica.
Sinto uma revolta enorme quando tomo conhecimento de casos como o da "sua" Gleicineide, e uma frustração enorme por nada poder fazer para acabar com tais situações.

Perdão???
Não me considero uma má pessoa, procuro praticar apenas o bem, e vivo em paz com a minha consciência. Mas... perdoar? Eu creio que não seria capaz. Não eu!

Para Gleicineide vai toda a minha simpatia.
Para você, votos de bom fim de semana.
Beijinhos

Ah! Adorei o texto, apesar do tema:)

Anônimo disse...

Oi José, ela tava fazendo terapia praticamente. Infelizmente existe sempre um caso na família.
Mas a mídia ajuda muito ao vício. A bebida é uma fuga.
Obrigada pelo comentário no meu blog, eu entendi que vc realmente ficou como realmente é, um bom virginiano, ficando no meio do zodíaco, o sexto signo astrológico.
Vc não sabe se vai para o coletivo ou para o individual, rsrs. Abraço Cynthia

Yo Neris disse...

Um texto denso, carregado de emoção, que me fez refletir sobre as desculpas que ouvimos hoje em dia, quando tudo é motivo, justificativa para atos criminosos...
Saudades de você, amigo.
bjs

Leninha Brandão disse...

Olha,Cacá,eu morei durante muito tempo em uma fazenda e meu sogro(era o dono da fazenda)tinha muitos empregados.Sempre que eu ia com ele às casas dos colonos ouvia esse tipo de histórias...eram pais que maltratavam as filhas,outros que as violentavam quando bebiam e as mães não podiam fazer nada,sob pena de serem também espancadas.
bjsss,Leninna.

Celina disse...

Oi amigo agradeço as tuas belas palavras, por sinal muito me emocionaram, sois mesmo um amigão.A história triste do mais forte, sobre o mais fraco é mais uma entre muitas que nós ouvimos por aí, Olha Cacá acho que uma criatura como esta, já está resgatando os seus débitos através dos seus sofrimentos. Um abraço carinhoso, Celina.

JoeFather disse...

Existem coisas amigo que são difícies de se perdoar, é fato, mas que deveríamos conseguir tirar de dentro de nós, pois só nos faz mal...

Abraços renovados e parabéns pela preciosa reflexão que nos trás!

Cilas Medi disse...

Não sei se estória verdadeira, sonhada e explicada, mas mesmo assim, seu moço, difícil de perdoar. O relato, não a história. Uai, seu moço, apaziguando alma também é ser gente. Só tome cuidado em dias que ela esteja de mau humor. Esconda os cabos de vassoura, seu moço, para o seu bem. O dela você o faz, ouvindo. Cacá, parabéns!

Quintal de Om disse...

Meu querido, vim hoje deixar um abraço imenso e sem fim, junto ao meu acrinho por ti.
Meu beijo, querido
samara Bassi

Sônia Cristina disse...

Que história Cacá,

me tocou de uma maneira tão profunda. Como é diícil o perdão, vou confessar aqui algo que ainda não disse na blogsfera:

Tenho sérios problemas com minha mãe (justo hoje confessar isso), durante muito tempo fiz terapia e o pisologo dizia algo que vou carregar para a vida inteira:

NINGUEM TEM OBRIGAÇÃO DE AMAR PAI OU MÃE SE REALMENTE NÃO MERECEREM SEU AMOR (isso me tornou mais leve Cacá), e não carrego nenhum sentimento de culpa...

Beijos pra moça

Unknown disse...

Cacá...
é tão triste olhar para o pai e não sentir carinho por ele.
dói, fica um vazio na alma e quem experimentou isso muitas vezes não encontra forças pra perdoar.
Tem que viver do jeito que é possível.

Cacá... queria que soubesse que você já me ajudou muito.

Tenho muito respeito e carinho por você, viu.
abraço do tamanho do mundo procê.

Web Statistics