quinta-feira, 13 de março de 2008

PESADELO

“Tudo o que cala fala mais alto ao coração”

(Lulu Santos e Nélson Motta – Certas Coisas)

Eu, de vontade própria tenho muita dificuldade em guardar ou lembrar os sonhos de noites bem ou mal dormidas. O meu subconsciente faz isso para mim. Lembrar-me, às vezes não, mas perturbar-me com sonhos indesejáveis, sim. Acho que ontem vi muito e ouvi falar tanto de acidentes que esse controle autônomo que temos, esse tal de subconsciente, não me deixou dormir sem a companhia da tragédia. Na primeira acordada que tive suado e tenso, pulei logo da cama com medo de voltar a dormir e os sonhos voltarem junto. Agora imperturbável aqui nessa cadeira que me acessa ao teclado, lembrei-me de uma dura experiência real que virou pesadelo, num endereço de república entre os muitos que houve em época de estudante.

Morávamos no centro de Belo Horizonte, edifício Maletta, famoso por vários atrativos ruins naquela época, exceto pelo preço do aluguel. Um de nossos companheiros de apartamento começara do nada, a dizer coisas sem sentido durante o seu sono, o que viemos a perceber só mesmo quando certa vez fomos despertados pelo barulho da janela do 11º andar onde ocupávamos um apartamento, alta madrugada. Ao acudirmos o sonâmbulo, notamos que falava e chorava, coisas incompreensíveis. Nós o despertamos depois de afastá-lo da janela e perguntamos se havia tido algum pesadelo ou se errara a porta do banheiro, já que havia tempos que dividíamos o mesmo espaço e ele nunca tinha apresentado esses disparates noturnos. Desconversou e voltou a dormir como quem apenas sofreu algum desarranjo momentâneo, mas que estava exausto e tinha aula nas primeiras horas da manhã. Dias seguintes, repetidas vezes, os sonhos povoando seus sonos e nossa insônia, passamos a fazer vigília revezada, temerosos pelas suas constantes tentativas de se jogar pela janela durante esses episódios. Agora já compreendíamos algumas de suas balbúcias, onde inconformava-se com uma moça que - dizia ele - não podia tê-lo abandonado daquela forma. Instado amiúde a contar-nos o que se passava em sua vida, dizia nada e reiterava ainda não se lembrar do que houvera sonhado em noite anterior. A situação foi se agravando porque já não dormia sequer uma hora consecutiva sem manifestar os pesadelos e levantar-se. Isso também estava esgotando-nos junto com as tarefas de estudarmos todos e estudarem e trabalharem alguns. Recorremos então ao decano da república, uma espécie de irmão mais velho e conselheiro de todos (no meu caso era irmão mais velho mesmo) para que tomasse providência que desse fim ao flagelo do colega e ao nosso. Já estávamos dando-lhe anti-alérgico como sonífero. Não para nos livrar do problema, mas para dormirmos sem temores e não perdemos aulas ou faltarmos ao trabalho por não haver dormido a noite quase toda. O remédio foi uma prescrição de outro colega que o usava para as suas coceiras e que dizia não se sustentar acordado quando tinha que ingerir algum comprimido.

Marcou-se reunião de todos para uma tarde e, pressionado pelos fatos, contou-nos, não sem muito sofrimento nosso, o seu penar. Tinha arranjado uma namorada linda e rica na escola técnica onde estudava e apaixonara-se perdidamente pela moça num lance tão rápido quanto foi sua morte durante as férias escolares, acometida de uma grave, impiedosa e rápida doença, que até hoje, imagino mas não sei do que se tratava.Ele soubera pela cunhada, que só foi conhecer pelo fato dela tê-lo procurado com uma carta de despedida que a falecida deixara em suas mãos caso não retornasse das férias.Tinha relevância para ele o fato da menina ser rica. Era o motivo de ter escondido de todos nós o relacionamento. Seu medo era que pensássemos ter ele interesses outros que não o amor puro que devotava a ela. Daí por diante, administramos com mais atenção, tolerância e solidariedade os seus momentos de crise onírica, que até reduziram-se um pouco com o desabafo entre amigos.

A saída encontrada ante ao medo nosso de suas aproximações noturnas à janela foi encaminhá-lo a um tratamento psicológico. Primeiro em minha escola onde havia um psicólogo que o atendia de graça ( não tínhamos recursos para bancar) nem ele queria que seus pais soubessem do caso. O que se tornou inevitável tempos depois, já que o profissional que lhe cuidava na minha escola escorregou, alegando estar sendo cobrado pela direção por atender pessoas que não eram alunas sem pagamento de honorários.O que aliviou a todos desse pesadelo vivo foi seu pai saber por nós dos fatos e providenciar terapia adequada.

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